É um erro gigantesco e antigo, não apenas recorrente mas insistente, esse costume de intelectuais de se meterem a julgar o que é Cultura, o que é válido. A percepção do que é artístico e o que não é é altamente subjetiva. Às vezes chega a parecer cristalinamente clara, outras nos deixa em grande dúvida. O principal problema desse julgamento é que, sendo subjetivo, está à mercê de todos os nossos preconceitos e visão de mundo.
Não me entenda mal. Eu já fui assim de querer separar a arte em duas. É frequente essa tentativa de classificar tudo em cultural e industrial, ou “alta cultura” e “popular”, ou “na brinca” e “na vera”, ou “acadêmica” e “leigo”, ou seja lá como se queira separar. Às vezes é uma forma de nos separar dos demais, de nos distinguir. Talvez nem seja por vaidade, mas apenas para dar uma valorizada no quanto investimos em estudo da língua, de técnicas e métrica. Mas sabe a real? Nem eu nem você tem legitimidade para definir qual arte vale e qual não vale. E quer saber o quê mais? Hoje acredito que ninguém tenha!
O sujeito que se sente erudito e bate no peito para falar que defende a norma culta do Português se esquece que o próprio Português nasceu do Latim Vulgar. O sujeito que reclama da música, valorizando apenas gêneros cult como o Jazz, esquece que o Jazz teve origem popular, filho dos negros estadunidenses. E origem não muito diferente tiveram o Rock, o Samba e a Bossa Nova. E nenhum desses estilos foi bandeira dos ditos cultos de seus tempos.
Tem temas e tipos que também costumam sofrer muito preconceito. Um bom exemplo de tema é a Sexualidade. Tema polêmico e motivo para muitos rebaixarem obras da condução de artística, como se as duas características fossem “obviamente excludentes”. Quem protesta contra exposições de Nu esquece que desde que existem expressões visuais o nu é representado em obras reconhecidas. Sem contar que a arte tem sim um papel de impactar a sociedade.
Desde que certos tipos de obra puderam ser produzidos para as massas, veio a visão de que este tipo de produção não era “arte de verdade”, mas “industrial”. A Música como produto sofreu com isso, assim como o Cinema. Se a possibilidade de ser reproduzida automaticamente for realmente um critério para desmerecer um tipo de obra, podemos decretar o fim da Arte como um todo, pois descontadas as características preciosistas que beiram a imperceptibilidade, não sei que tipo de obra hoje está a salvo dessa característica.
Mas vamos voltar à questão de popular versus erudito. Acredito que o estudo aprofundado em uma arte se torna uma ferramenta com grande potencial de agregar ao artista, uma ferramenta a mais. Assim como o entendimento do mundo a seu redor, o consumo de outras obras, inclusive de outras artes. Tudo são ferramentas, que podem ajudar o artista a produzir sua próxima obra. Mas a falta de alguma dessas ferramentas não impede a expressão. Fosse assim não teríamos instrumentistas compositores virtuosos e autodidatas, de origem simples. Nem preciso citar exemplos, creio que você conheça algum. A falta do estudo formal pode dificultar, mas está longe de impedir a Arte. Do contrário, o domínio desse estudo não cria um artista por si. Se o mero conhecimento de técnicas bastasse, seria muito fácil termos programas de computador produzindo arte sozinhos. Não que não possamos ter programas assim no futuro, mas isso já é outra história…
Tudo isso que coloco é opinião e percepção. Você tem todo o direito de concordar ou discordar, integral ou parcialmente. Por fim, ainda tenho um tato para definir o que considero arte e o que não considero, mas tento ver os motivos que podem estar envolvidos nesse julgamento. E sei que esse julgamento é pessoal meu e que essas obras por aí vão continuar sendo ou não sendo arte independente do que eu pense. E que é meu direito gostar delas ou não, independente de serem arte, ou de eu pensar que são.
— Cárlisson Galdino
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Este artigo foi publcado na edição de 2018 do Informativo ACALA